Afro Jazz

Coletivo Novos Cachoeiranos, uma experiencia de conexão entre a universidade e jovens músicos

Uma das experiências mais ricas no campo da música que acontece no Recôncavo Baiano (Bahia, Brasil) e que conecta a Universidade (UFRB) com a comunidade e o projeto Coletivo Novos Cachoeiranos, que tem como um dos seus mentores o Prof. Dr. Sólon Albuquerque*.  O Coletivo “tem como ideal desenvolver composições autorais e eventuais arranjos e/ou releituras de obras preexistentes”, além de ser um grupo de estudos de música.  Conheça aqui as idéias desse professor sobre esse projeto extensionista.

Em que sentido podemos conectar uma formação mais tradicional e acadêmica em música – que é seu caso –  com experiências de produção musical popular e comunitária?

 Professor Dr. Sólon Albuquerque  – Acredito que Paulo Freire, apesar de não escrever especificamente sobre música, nos deixou um legado pedagógico que pode ser perfeitamente adaptado ao universo da educação musical. Quando me formei em “Composição e Regência”, frequentei um curso com uma formação fechada, baseada em modelos eurocêntricos. Meu histórico musical e as particularidades da minha vida não eram levados em conta, assim como o ambiente em que a universidade estava inserida (Curitiba/PR) pouco influenciava o conteúdo. Apesar de ser uma formação sólida em técnicas composicionais eruditas do ocidente, este curso não dialogava com a formação prévia dos estudantes. Quando entrei na universidade já tinha um passado musical (formação em banda de sopro/filarmônicas, bandas de baile gauchesco, bandas de rock de garagem, orquestra de câmara de conservatório), da mesma maneira meus colegas possuíam uma bagagem que era simplesmente desconsiderada durante o curso, com duração de seis anos.

Isto sempre me incomodou como aluno. Ao mesmo tempo sempre achei importante conhecer a fundo as técnicas dos três grandes sistemas da música erudita ocidental (modal, tonal e atonal), que influenciou o mundo todo, inclusive o oriente. E sentia esta lacuna em minha formação, pois trabalhava tocando em bandas de música popular, de tal maneira que tracei um caminho autodidata na minha formação em musica popular. Desta maneira, meu conhecimento em harmonia popular, técnicas de arranjo, ritmos e estilos brasileiros, entre outros assuntos, foram forjados de maneira autodidata, pois minha atuação profissional dependia disso. Ao mesmo tempo que as técnicas composicionais aprendidas na universidade eram uteis, não davam conta de muitos aspectos da prática em que eu estava envolvido na época.

Minha relação com a docência é muito recente, iniciou-se em 2016 na UFRB, e logo iniciei o projeto “Coletivo Novos Cachoeiranos”, onde temos aulas de arranjo e composição (complementadas por aulas de estética, regência e apreciação musical), e também prática de conjunto. Produzimos nossas próprias composições, e desde o início tento lecionar me colocando no lugar dos meus alunos, inclusive lembrando de minhas necessidades e anseios enquanto estudante. Muitas coisas que eu queria ter tido aula e não tive, eu passo para os meninos. Desta maneira a conexão entre os saberes musicais tradicionais dialogam de maneira orgânica com experiências de produção musical popular e comunitária. Nas aulas abordamos desde contraponto bachiano, passando por dodecafonismo, mas também ritmos de matriz africana, além de elementos da música de massa, como o “arrocha”, o “rock”, e elementos regionais, e também as especificidades das técnicas de arranjo e da forma canção. Claro que esta abordagem exige estudo e pesquisa por parte do docente, pois os métodos tradicionais não foram pensados para esta prática. Ao mesmo tempo, temos uma bagagem pedagógico musical que não deve ser desprezada, por este motivo nossa extensão está conectada com o projeto de pesquisa de “Contraponto aplicado a Música popular”, onde desenvolvemos um método para ser posteriormente aplicado na universidade. No fundo acredito que cada turma, e pode-se dizer que cada aluno exige uma formação personalizada, que leve em conta vários aspectos de sua vida.

Um de seus projetos na Universidade (UFRB) tem esse caráter extensivo – o Coletivo Novos Cachoeiranos. O que é o Coletivo? Como se deu o processo de formação do mesmo? Como é atuação individual e coletiva na criação do repertório, organização e nos processos criativos do grupo?

 O “Coletivo Novos Cachoeiranos” é um grupo de músicos[1] que tem como ideal desenvolver composições autorais e eventuais arranjos e/ou releituras de obras preexistentes. É também um grupo de estudos, desenvolvemos oficinas de composição, improvisação, harmonia, contraponto, estética, história e apreciação da música, além de prática de conjunto. É um projeto de extensão do CECULT/UFRB em parceria com a Sociedade Cultural Orpheica Lyra Ceciliana”, mas também é um projeto caseiro, familiar. Funciona na minha atual residência, que foi onde morou o Maestro Manoel Tranquilino Bastos, nas terças e sábados, das 14:30 as 18:00, e temos o grupo de estudos em Contraponto Aplicado a Música popular, que funciona as segundas feiras, das 15:30 as 18:00 horas. O projeto é formado por professores do CECULT e membros da comunidade. Minha esposa, Samanta Oliveira e minha cunhada trabalham na produção do projeto, e temos a participação do professor Lúcio Agra, nosso vice-coordenador do projeto, baterista e professor de história e apreciação da Música. Sempre tivemos total apoio do nosso atual diretor do CECULT, Danilo Baratta, essas parcerias são fundamentais para que o projeto funcione. Diversos professores do CECULT/UFRB e também da UFBA colaboram com nosso projeto, com aulas, confecção de figurinos, cenografia, iluminação, entre outras demandas.

O grupo foi criado em fevereiro de 2016, quando fui na sede da Lyra Ceciliana propor uma parceria, foi onde conheci o “Jorjão da Lyra”, vice presidente desta filarmônica, atual saxofonista do Coletivo. Afinamos as ideias e decidimos criar o coletivo, inicialmente éramos em apenas sete, juntando membros da Lyra Ceciliana que tinham um grupo de Choro, e a partir daí começamos a nos encontra uma vez por semana. Em poucas semanas começaram a aparecer jovens interessados em integrar o Coletivo, e ampliamos os encontros para duas vezes por semana. Eu dava aulas de arranjo e composição e escrevia as primeiras partituras do grupo. Neste mesmo ano, fizemos nossas primeiras apresentações com repertório próprio. Teve dois trbalhosdos meninos, os outros eram composições minhas. A partir de 2017 começamos a compor coletivamente, comecei a dar aulas em que os trabalhos eram direcionados para a produção autoral para o grupo. No inicio a maioria das composições eram minhas, mas em maio de 2017 fizemos o primeiro concerto somente com obras deles, escritas para o grupo. Todos compuseram, foi o trabalho final daquele módulo. Neste ano (2018), quase todo nosso atual repertório é criação coletiva, e em sua maioria são resultados das técnicas que estamos estudando naquele momento, misturados com elementos da musicalidade individual. Nossa música é bastante mestiça, neste sentido, pois resultam numa colagem de estilos, porém esta mistura nasce de manera espontânea, e talvez por isto não soe caricato nem forçado. A técnica de soundpainting ajudou muito no nosso processo criativo coletivo, pois nestas experiências acontece uma troca muito forte de musicalidade, pode-se dizer que todos os integrantes influenciam e são influenciados. Acredito que esse processo criativo, e que esta metodologia só seja possível por termos a possibilidade de transformar todas nossas ideias em som. Se fosse uma turma tradicional de composição, que compõe no papel, mas que não executa suas ideias imediatamente após serem criadas[2], esse processo não teria chances de prosperar com tanta naturalidade.

De qualquer maneira existe um planejamento em relação à orientação técnica da criação do repertório. Por exemplo, se estamos trabalhando técnicas mecânicas em bloco, a produção composicional deverá conter esses blocos, porém o resultado disto pode ser muito pessoal, a vivência e musicalidade de cada um podem ser expressas sem ser comprometida pelas técnicas.

O Coletivo está centrado no ambiente do Recôncavo Baiano, com todas suas tradições da cultura afrobrasileira. Esteticamente como esse ambiente interfere nos devires do Coletivo?

Procuramos estabelecer parâmetros estéticos nas oficinas de criação, por exemplo, estudamos a possibilidade de mesclar a técnica contrapontística com algumas claves de matriz africana, as polirritmias dos tambores de candomblé transposta para motivos melódicos para os sopros, e através disso tecer uma trama de texturas e contrapontos. Não podemos forçar as coisas quando se trata de criação musical, mas essa transposição dos ritmos de candomblé para nossos arranjos foi uma solicitação dos próprios discentes. Trabalhamos também alguns aspectos relativos a vanguarda musical da música erudita ocidental dos séculos XX e XXI, como o atonalismo, o espectralismo, o trabalho com texturas, novas sonoridades nos instrumentos tradicionais, a politonalidade, enfim, esses materiais são sempre ressignificados dentro de nossa realidade e contexto sociocultural.

Entrevista: Cláudio Manoel Duarte

 

*Professor de Arranjo e Composição, nível Adjunto A (dedicação exclusiva) da UFRB, lotado no CECULT (Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas).Possui graduação em Composição e Regência pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (2009), graduação em Música Bacharelado Em Instrumento pela Universidade Federal de Santa Maria (2002), graduação em Licenciatura Em Música pela Universidade Federal de Santa Maria (2002), mestrado em Teoria e Criação – UFPR (2009) e doutorado em composição musical pela UFBA (2014). Estudou composição com importantes compositores, como Dimitri Cervo, Harry Crowl, Maurício Dottori, Arrigo Barnabé, Rodolfo Coelho, Paulo Costa Lima, e arranjo com Daniel Morales, Ian Guest e Alfredo Moura. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Composição Musical, atuando principalmente nos seguintes temas: composição, análise musical, arranjo, música do séc. xx, música experimental e música eletrônica.

 

[1] Atualmente o Coletivo Novos Cachoeiranos conta com 21 músicos: 2 flautas, 1 clarinete, 2 sax altos, 2 sax tenores, 5 trompetes, 1 trombone, 2 tubas, 4 percussionistas, 1 baterista e 1 tecladista.

[2] A maioria dos cursos de composição não tem como metodologia criar obras para um grupo específico de maneira continuada, o mais comum é executarem obras de alunos mais adiantados, como trabalhos finais.