Prof. Dr. Pedro Nunes (UFPB, Brasil)*
Ensaio cedido pelo autor e publicado originalmente no ebook Pragatecno – Uma outra cena do mesmo (org: Adriana Prates e Cláudo Manoel Duarte, em pragatecno.com.br)
Há uma intrínseca relação entre Arte e Tecnologia que atravessa temporalidades passadas e presentes. Essas instâncias semióticas geradoras de sentidos são resultantes dos mecanismos de intervenção relacionados com a capacidade humana que por sua vez opera com as dimensões da subjetividade para a produção do conhecimento. O termo tekhne que designa tecnologia também significa arte ou ofício em sua origem grega. Assim devemos entender o conceito de tecnologia por uma acepção mais ampla, na condição de artefato da cultura. Nesse sentido, a escrita, por exemplo, é também tecnologia social visto que enquanto sistema de representação associada à invenção passou por convenções e regras de articulações. Em seu contexto social específico, cada modalidade escrita dispõe de suas próprias regras de combinação e linguagem para se estruturar enquanto código que também se modifica ou opera com deslocamentos.
Em sua feição atual, afirmamos que a tecnologia habitualmente é resultante dos processos de pesquisas que envolvem a construção do conhecimento científico. Há, então, uma forte vinculação entre as tecnologias produzidas pelos sujeitos sociais e a ciência. Posso então destacar que as tecnologias são também as máquinas, as ferramentas, os artefatos ou dispositivos técnicos decorrentes dos avanços científicos. Trata-se de relações que envolvem o paradigma da complexidade, visto que as tecnologias existentes, em movimentos contrários, também impulsionam a ciência. Algumas tecnologias que revolucionaram no passado hoje são ferramentas banais face aos próprios avanços do conhecimento e transformações quanto ao uso e rearranjos da própria tecnologia. Assim, as tecnologias evidenciam estágios de amadurecimento do conhecimento humano e espelham as próprias dinâmicas do ser e estar no mundo em todas suas esferas simbólicas, socioculturais e organizacionais.
Diante dessa contextualização que evidencia os diálogos e entrecruzamentos entre tecnologia e ciência, nós também podemos estabelecer conexões com a arte. Ao contrário da ciência, a arte não necessita de comprovação. Com a sua dimensão projetiva e especulativa, a arte pode dispor da liberdade de questionar a própria ciência. Pode atuar livremente como interrogante da realidade ou dispõe da possibilidade de recriar realidades presentes, passadas ou futuras. A ficção enquanto nova realidade pode remeter à realidade em si. A realidade na arte pode muito bem se confundir com a ficção e, com seus jogos combinatórios, é plenamente capaz transformar-se em hiper-realidade plurisignificante.
A arte em sua condição espectral opera com premissas situadas no campo conotativo das ambiguidades. Essa característica que se distingue da ciência denotativa possibilita graus de abertura interpretativa junto aos públicos, receptores ou usuários interagentes com a obra artística. As possibilidades conotativas da arte amplificam a produção de sentidos face às possibilidades combinatórias materializada em trabalhos que demandam interação. O movimento interpretativo de semiose possibilita que a arte e a própria comunicação adquiram vida com novos contornos de ressignificação.
Vale frisar que a arte em sua pluralidade de manifestações é, também, expressão meticulosa do gesto criativo que evidencia marcas próprias da atividade humana. Assim, toda expressão artística tem o seu estilo, possui a sua marca, revela os traços do seu criador, reclama por interação ou nos provoca o êxtase seguido da repulsa. Esses traços da criação que revelam o estilo são engendrados pelo artista-criador-orquestrador que estabelece combinações formais com diferentes classes de signos visuais, sonoros, verbais, espaço-temporais, gestuais, signos híbridos entre outros. Por vezes ficamos atônitos diante obras com os seus arranjos inusitados que provocam os nossos sentidos. Em outras situações a estrutura significante da arte provoca ou reclama o nosso distanciamento com a finalidade de utilizarmos as nossas armas críticas para melhor compreender as quebras de paradigmas de obras conceituais pensamentais. Arte em si é pura combinação de signos, códigos e linguagem. Pode ser a extrema ousadia da antilinguagem, da não narratividade, dos fragmentos de sons, imagens, palavras soltas, grunhidos, ruídos e silêncios descontínuos. Quem pensa a arte é o sujeito que se debate com a obra e que também necessita de um mergulho para depois poder respirar e evitar a asfixia. A arte, ao encampar a dimensão estética, torna-se reflexo das intervenções conscientes e das ações decorrentes da imaginação inventiva. Dizemos que a arte, com sua carga polifônica impregnada por seu criador, mobiliza determinadas linguagens que estão estreitamente relacionadas aos dispositivos tecnológicos acessíveis em cada época.
É importante destacar que ao longo da história humanidade vivenciamos transições, transformações e entremesclas dos distintos modos de produção, circulação e trânsitos das artes. Faço aqui um desenho-síntese adaptado desses estudos com base em interpretações que já são de domínio público. Grosso modo, a primeira modalidade – de manifestações da arte de cunho nitidamente artesanal como a pintura, os grafismos, a escultura, o canto… – foi nomeada por Lúcia Santaella como experiências situadas no campo do paradigma pré-técnico. Abraçam o paradigma pré-fotográfico as obras materiais únicas com singularidades no seu processo construtivo que evidenciam o original.
A segunda modalidade envolve uma ampla faixa de experiências estéticas associadas aos processos mecânicos cujo traço distintivo demanda a mediação de suportes tecnológicos. Trata de uma era que apresenta como característica principal a reprodutibilidade. As narrativas, produtos e poéticas que compõem o paradigma da multiplicidade dependem da existência de dispositivos mecânicos, automáticos adotados para a criação, produção e reprodução em série. Matrizes, copião, negativos, modelos, protótipos decorrentes da sociedade industrial possibilitaram a maximização da produção em larga escala a partir de infraestrutura de base mecânica e que rapidamente começa a dialogar com os avanços da eletrônica. Regis Debray denomina essa modalidade como grafosfera. Abrange um período elástico que compreende desde o surgimento da imprensa até a Televisão em cores. Já Lucia Santaella intitula como paradigma fotográfico associando às idades do processo construtivo das modalidades de narrativas visuais e audiovisuais que também dialogam com outros sistemas narrativos. Essa era em que se dispõe de matrizes para a produção e reprodução de cópias também abarca as artes e demais narrativas produzidas com os dispositivos de matriz tecnoeletrônica.
Outro paradigma que avança e dialoga com os estágios predecessores envolve uma lógica paradoxal designada por Santaella como paradigma Pós-fotográfico. Diz respeito aos processos de produção, circulação ou transmissão em tempo real e mecanismos de interatividade que estão vinculados aos sistemas digitais. Há visivelmente nessa dinâmica digital dos processos imateriais uma mudança paradigmática vinculada à fluidez, as dinâmicas de colaboração, aos refinamentos da interação, mobilidades, velocidade, valorização do fragmento, vivências do efêmero, lógicas rizomáticas, propostas transfronteiriças e ampliação da autonomia nos processos de produção e circulação de conteúdos em rede. Os sistemas digitais desestabilizam ou dinamitam lógicas antecessoras ou reforçam a necessidade da existência do diálogo na própria arte e nos demais campos que envolvem a atividade humana.
Em sua forma de produtos, meios ou processos interligados os tecnológicos digitais, são partes orgânicas dessa lógica paradoxal pós-fotográfica; reconfiguram as artes que operam com todas as classes de signos que mobilizam a visão, audição, tato, olfato e paladar. Através das diferentes tecnologias, notadamente de matriz digital, a arte tem se empenhado, por meio dos criadores, em produzir poéticas que adotam como premissa a sincronização dos sentidos. Em perspectiva ampla destacamos que diferentes tecnologias ampliaram as possibilidades para o nascedouro de propostas de cunho poético que apostaram ou ainda apostam no extremo da invenção com vistas a produção do estranhamento. A sedução e o encantamento previamente pensados para enovelar o intérprete que faz a imersão em determinadas propostas tecnológicas podem, também, a partir dos arranjos formais, incitar para a aversão dessas mesmas poéticas experimentais onde a tecnologia é uma base de apoio indispensável para o aporte do conhecimento que necessita ser decifrado e movimentado.
Arte é então estranhamento que nos impacta e pode nos auxiliar enquanto oxigênio para repensarmos as normatizações cotidianas da própria vida. A arte reinventa a vida ou questiona as misérias da condição humana. Toda manifestação artística requer intérpretes, participantes ou coautores para dar-lhe vida. As tecnologias funcionam enquanto instrumentos que podem ser manejados de modo crítico-criativo por artistas para a construção de poéticas tecnológicas deliberadamente experimentais seja no campo da musica, da poesia, dança, teatro, performance, instalações, projetos multimídia, mídia, hipermídia, web arte, cinema expandido experiências em rede, propostas sincronizadas, entre outras.
Em tempos de “modernidade líquida”, “vidas líquidas” e “afetos líquidos” há ainda o paradigma da hibridez que mistura ou congrega lógicas artesanais, analógicas, mecânicas, eletrônicas e digitais. Esse paradigma das misturas para produção da arte expandida abrange dispositivos, meios, mídias, hipermídias, processos digitais, satélites, softwares, sensores, rastreadores, robótica, inteligência artificial, ambientes virtuais, simuladores, bancos de imagens e sons, metadados, repositórios, aplicativos para criação em tempo real, mixers, osciladores, filtros, samplers, aplicativos para programação, tradutores automáticos, sintetizadores analógicos e digitais, programas de edição de imagem e som, tratamento da imagem, correção, pós-produção entre outros. Essa hibridez ultrapassa os meios, hipermeios e processos envolvem a mistura de técnicas, entrelaçamento de linguagens, reapropriações de estilos e misturas no próprio campo da cultura.
Os processos híbridos no campo da arte, através de seus mentores, admitem acasalamentos, alargamentos, fusões, justaposições de mídias, ações em redes e misturas de culturas para gerar novas formas de produção de narrativas. Assim, as poéticas tecnológicas exalam essas misturas e ressignificações decorrentes de temporalidades distintas que se fundem em processos híbridos que reorganizam sons, ruídos, silêncios, oralidades, escritas, tatilidades e visualidades em distintos sistemas de representação. Esses trânsitos, novimentos dos processos criativos híbridos se efetivam ou se contaminam de forma recíproca.
Essas experiências tecnológicas materializadas no espectro da arte eletrônica e da arte digital também se distinguem pelo seu modo singular de organização e pela forma de como os seus criadores se apropriam das ferramentas tecnológicas disponíveis em cada época.
Através do recuo temporal é possível enxergarmos o gesto criativo de Pierre Schaeffer que, em 1948, utilizou materiais sonoros diversos produzidos por objetos, ruídos, estampidos, vozes e sons humanos no processo de construção da obra musical Etudes de bruits – apresentada ao vivo e que misturava sons obtidos com gravações e regravações em fita magnética associados aos sons originais.
Artistas como Pierre Schaeffer e Pierre Henry, que trabalharam com as experimentações da música concreta evidenciando camadas de sons a incorporação das tecnologias, também promoviam o exercício acurado da escuta, a exemplo da Symphonie pour um Homme Seul (1949–50) que é considerada como prelúdio da música eletroacústica.
Por sua vez os primórdios da elektronische Musik tem como destaque uma corrente de pesquisadores\compositores da Escola de Colônia antiga Alemanha Ocidental liderada por Herbert Eimerte e as participações de Werner Meyer-Eppler, Karlheinz Stockhausen, Henri Pousseur entre outros nomes de destaque. Essa escola, também denominada de Senoidal, radicalizou através de seus pesquisadores\compositores nessa primeira absorção criativa com dos dispositivos tecnológicos eletrônico-analógicos. Tem-se nesse processo de estruturação inicial da música eletrônica um conjuntos de equipamentos como os sintetizadores, moduladores, geradores de som entre outros que irão subsidiar a produção, manipulação e desenvolvimento de timbres e sonoridades de composições mediadas pelas tecnologias, inventividades dos artistas, quebras de cânones musicas e árduos trabalho de pesquisa. Elektronische Studie I (1953) e (1954) de Stockhausen onde emprega misturas sonoras com base em ondas senoidais.
Apesar do clima de tensões e rivalidades entre a Música Concreta de origem francesa e a Música Eletrônica Senoidal de origem alemã, desencadeia-se um diálogo construtivo entre ambas pela capacidade inventiva de ambas. Essa conversação ocorre em 1955 quando Stockhausen e o grupo alemão bebem na fonte da escola francesa de Música Concreta tendo como exemplo a composição de Ernst Krenek para soprano, tenor e sons eletrônicos intitulada Pfingstoratorium Intelligentiae Sanctus (1955), Esse hibridismo também ocorreu por parte dos franceses e, em 1958, caracteriza essas inter-relações composicionais de música eletroacústica.
Esses são dois veios da música eletrônica com seus diálogos, aproximações e diferenças cujos processos criativos tem por base usos das tecnologias e que integram o campo da arte eletrônica. Há ainda experiência inovadoras do americano John Cage que fez brotar a música aleatória, conseguiu destaque com a música eletroacústica, incorporou silêncios, ruídos e instrumentos não convencionais em seus happenings e desenvolveu performances colaborativas que previam a intervenção do público.
É visível uma certa ascendência de Stockhausen em bandas inúmeras bandas do cenário do rock a exemplo de Kraftwerk que no anos 1970 fizeram uso de sintetizadores, percussão eletrônica com batidas robóticas e adensaram as suas experiências musicais na relação humanoXmáquina. Assim várias experiências musicas afloraram nas décadas seguintes aprofundando essa relação da Arte Eletrônica, particularmente da musica, com o uso inventivo das tecnologias eletrônicas, digitais, experiências no campo da cibercultura, das redes, interconexões com satélites dentre outras.
Na esfera das poéticas eletrônicas com o vídeo e a televisão é importante destacar as vídeo-instalações performáticas do sul coreano Nam June Paike, dos alemães Wolf Vostell e Joseph Beuys e as intervenções criativas envolvendo o suporte televisão desenvolvidas pelo francês Jean-Christophe Averty e do húngaro Ernie-Kovacs. Esses artistas precursores do vídeo-arte promoveram quebras de paradigmas estéticos ao ressignificarem o tradicional papel das mídias vídeo e televisão tendo como apoio o gesto criativo da invenção além de promoverem diálogos com a música, escultura, dança dentre outras artes.
O destaque quanto a ancestralidade e importância da arte eletrônica é por fim dedicado à Nam June Paike, um dos precursores do vídeo-arte com formação música em piano clássico e graduação em História da Música na Universidade de Tóquio. Integrou o Movimento Fluxus sendo o seu trabalho fortemente marcado pela presença e contribuições dos compositores Stockhausen e John Cage. A sua obra inicial Exposition of Music-Electronic Television, em que distribuiu inúmeros televisores na área da instalação com imãs que distorciam as imagens. Desenvolveu uma serie de vídeos-arte com violoncelista clássica Charlotte Moorman e com o musico e ator japonês Ryuichi Sakamoto.
Por fim é interessante frisar que as experiências diversificadas da nossa contemporaneidade, em termos de arte eletrônica e arte digital, possuem autonomia e desfrutam dos avanços da tecnologia e ciência. A existência dessas experiências criativas do passado que marcaram contextos de época específicos com o uso critico e inventivos das tecnologias, podem muito bem iluminar o presente. O futuro nós humanos construímos com as marcas presente.
Nunes, Pedro. Arte, tecnologia e processos criativos. Em: Souza, Adriana Prates; Duarte, Cláudio Manoel de (Org.). PRAGATECNO ― uma outra cena da mesma. 1a edição (ebook). Salvador: DaMãeJoana Casa Editorial. 2015. Disponível em: www.pragatecno.com.br.
*Pedro Nunes Filho – Pós-Doutorado – Comunicação em Sistemas Hipermídia pela Universidad Autónoma de Barcelona (2003). Doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com bolsa sanduíche na UAB – Espanha (1996). Mestrado em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (1988). Especialização em Metodologia da Comunicação UFMG CIESPAL (1982). Graduação em Comunicação Social – Habilitação Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (1980). Atualmente é professor Titular do Departamento de Comunicação e Programa de Pós-graduação em Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba. Possui experiência na área de Comunicação e Semiótica, com ênfase em Processos midiáticos audiovisuais, atuando principalmente nos seguintes temas: Jornalismo Multiplataforma, Jornalismo e Cidadania, tecnologias audiovisuais, processos digitais, fotografia, cinema digdital, vídeo, projetos multimídia, cibercultura, comunicação comunitária e encenações da sexualidade no contexto das mídias audiovisuais.