Corpo, Tecnologias e Videoarte

 

 

Nessa entrevista o artista e prof. dr. Danillo Barata* (UFRB, Brasil) fala sobre o corpo como local de inscrição e sua relação com a videoarte

O corpo é um campo de acontecimentos estéticos?

Acredito que o corpo histórico, o corpo que se inscreve como lugar de acontecimentos, ou seja, o corpo que é fruto das transformações culturais, sociais, econômicas e estéticas, está na base da complementaridade entre o homem e natureza.  O interesse por expressar o rompimento e a apropriação de minha própria imagem foi determinante para o início da pesquisa com o corpo. A despeito da fotografia e do filme, existem outras maneiras de capturar a imagem. O espelho é a principal forma de inspecionar o nosso corpo; quando a câmera e o vídeo substituem o espelho, temos a arte do corpo. Os padrões estéticos ditados pelo mundo fashion, por exemplo, vão além da prescrição do que vestir, interferindo na construção social do corpo. Tais padrões, tornando-se pontos de referência, lançam o homem numa procura desenfreada de “espelhos externos”, fetiches de uma sociedade de consumo que possibilitam a construção de uma imagem ideal. Assim, o homem ocidental rende-se a estilos muitas vezes impostos, sendo seduzido pela mídia “comprar” modelos físicos distantes da sua realidade. Vive-se um tempo de extremo inconformismo com o próprio corpo, a tal ponto que a modificação do físico por meio de interferências cirúrgicas, implantes e mutilações é algo corriqueiro, banal. Numa tentativa de autovalidação, o mundo das aparências criado pelos sistemas da moda e da publicidade se apropria da permanência do objeto artístico, fazendo constante referência e buscando inspiração em obras de arte consagradas. No entanto, tais esforços não conseguem sobreviver ao imediatismo de uma sociedade que se rende aos fenômenos midiáticos. Curiosamente, a necessidade de se expor em conformidade com os padrões corporais do momento busca sua validação em representações de mitos televisivos e imagens que são efêmeras ao extremo, caracterizando assim a obsolescência do corpo, que passa a estar em constante necessidade de atualização. Essa corrida por padrões cada vez mais distantes e inatingíveis gera um imenso vazio que potencializa a eterna insatisfação do homem moderno.

O que podemos entender sobre poética do corpo em sua relação com as tecnologias?

Para analisar os modos discursivos na relação entre o corpo e a expressão videográfica, abordamos trabalhos que apontam para um caminho construído pela poética do corpo, utilizando como linguagens o vídeo, a performance e as videoinstalações. Motivados por essa tendência, buscamos uma ampliação desses conceitos e dos meios artísticos de expressão, para uma pesquisa em análise das mídias. O vídeo, no contexto da arte contemporânea, passa por uma contínua transformação. Trata-se de uma emancipação no campo da visualidade dos métodos operacionais quanto aos gêneros e, sobretudo, às linguagens. Ao observar as transformações ocorridas no campo do vídeo nos anos 1980 e 1990, notamos uma estreita relação com as práticas, no campo artístico, do registro, daperformance e do diário íntimo. A facilidade no uso das câmeras digitais, aliada ao «excesso» na captura e no descarte, proporcionou uma mudança radical no que tange às relações com a imagem. Os formatos transgressores das performances e da videoarte nos anos de 1960 e 1970 nortearam o direcionamento das atividades artísticas na contemporaneidade. O desdobramento de suas ações, aliado ao contexto político da época, permitiu que as práticas e os terrenos de intervenções apresentassem a vida diretamente com os seus objetos, fugindo assim da representação realista e da interpretação subjetiva na arte. Tais práticas permitiram um discurso mais contudente no que tange às posturas marginais, fora do sistema social, instaurando novas concepções artísticas; contudo essas experimentações não escaparam de um declínio político-estético. Visões mais antropológicas, como a do artista Joseph Beuys, definem a arte como qualquer tipo de ser ou de fazer, e toda a tecitura social, incluindo a política. Com efeito, a escultura social preconizada por Beuys estava no coração das atividades artísticas da época e serviram de farol para as décadas seguintes. As práticas nos campos dessas ações vão tornar-se uma forma de expressar a experiência da marginalidade cultural ou de dar voz àqueles que, por vários motivos, são excluídos da experiência cultural. Com o desenvolvimento da performances e da videoarte, em constante diálogo de superação com o espaço, como fuga e reflexão sobre o caráter mercadológico da arte e de toda estrutura (museu, galeria, marchand), essas duas linguagens vão se agregar aos muitos falares na contemporaneidade, onde o corpo é elemento fundamental, seja pela sua plasticidade ou, até mesmo, pelo inusitado de suas ações. Dessas investigações, três paradigmas estéticos foram instaurados: a arte como processo e não como resultado final; a participação direta do público na criação e construção da obra; e a incorporação da dimensão ambiental da obra de arte. O objeto artístico transforma-se, não se resumindo apenas ao produto final e passa a ser compreendido como um todo — processo e procedimentos.

A videoarte, como expressão das artes visuais, teve um impacto afirmativo ainda nos anos 60, com a utilização de tecnologias imagéticas, principalmente com artistas como Wolf Vostell, Joseph Beuys, Bill Viola, Nam June Paik… Hoje, nesse cenário de imagens que dominam o contemporâneo, com novos elementos como interação digital e projeções em mapeamento, onde estaria o escopo da videoarte – ela não teria sofrido hibridações além da tela de vídeo?

Muito embora a percepção da arte na modernidade estivesse em interpretar e não mais representar a realidade, após a inserção e incorporação de meios técnicos para captura e manipulação da imagem, os artistas de vanguarda buscaram romper com os espaços formais das linguagens. Um sentido mais interdisciplinar despontou. No início da década de 1960 vai instaurar um novo paradigma na arte: não se representa nem interpreta, agora tudo é apresentado. Talvez o conceito de apresentação seja o mais apropriado para criar as bases da performance: o artista, o seu corpo em diálogo com o espaço, com o público e com a câmera. O corpo em diálogo com o espaço emerge em um período em que a inquieta- ção de diversos artistas, tomados pela ideia da chamada antiarte, desperta novas maneiras de ressignificar a estética e a própria definição de arte. Fugindo do contexto mercadológico, que transformou boa parte da produção artística em objetos de consumo dos especuladores e grandes empresários do mercado financeiro, a reação dos artistas nos anos 1960 e 1970 foi deixar de fazer objetos e fazer uma arte que teoricamente não poderia ser vendida; arte que fosse simplesmente um evento, deixando apenas um registro em filme ou em tape. Assim, o corpo assume um lugar estratégico para a ação artística. Um desejo de retornar ou tomar a cabo o famoso lema dadaísta, a fusão da arte-vida. A tragédia, o desconforto e a crítica social são a tônica das atividades na arte desse período. A apropriação desses temas pela arte conceitual e minimalista, por artistas como Richard Serra, com seu vídeo TV del People, colocava em xeque a responsabilidade das grandes corporações americanas pela industrialização da cultura. A busca de novos modos de expressão, o estreitamento entre arte-vida, era esta a forma como o artista estabelecia a interlocução social, sendo agente primordial do discurso contundente e pro vocativo, arraigado à sua poética, diminuindo os espaços interior-exterior. Não por acaso o surgimento dessas linguagens estava associado a momentos muito particulares da metade seguinte do século xx. As definições de arte e política, a questão do gênero e a postura marginal permearam as práticas e os terrenos de intervenções desse período. Era necessário apontar outros caminhos, e outras narrativas só se tornaram possíveis através de dispositivos midiáticos. No campo teórico, textos seminais como os de Marshall McLuhan, em Os meios de comunicação como extensões do homem, de 1964,11 apontaram para a direção da inevitabilidade do meio e suas operações; e no campo do simbólico, o ensaio de Guy Debord, A sociedade do espetáculo, de 1967, analisou as mudanças comportamentais na modernidade.
 No final da década de 1970 e início dos anos 1980, Jaime Davidovich escreveu O Fracasso da Videoarte, manifesto redigido em reação à prática de mostrar videotapesem televisores, para espectadores sentados em filas, em pequenas salas de museus e galerias de arte. No manifesto, ele não cita as videoinstalações nem asvideoperformances, pois considera que a fruição destas obras escapa à situação televisiva. Os argumentos que apontam o fracasso da videoarte são, sobretudo, a criação, nos anos 1980, da mtv, pois abarcou a confluência do experimentalismo para as produções que envolviam a música e a imagem; a concorrência com a tv aberta, que já se imprimia como uma avassaladora máquina; e o esgotamento das obras videográficas diante do mercantilismo da arte (a comercialização de videoarte era descartada), pois o reconhecimento dos meios artísticos estava pautado, principalmente, na pintura e na escultura. Nesse manifesto, ele descreve outros pontos determinantes. O caminho percorrido pela nova geração de artistas vem acompanhando a trajetória dos precursores da artemídia citados, empreendendo com grande vigor um olhar apurado para os acontecimentos socioeconômicos, políticos e estéticos. Com essa nova gramática e com essas novas maneiras de ressignificar o olhar, através das técnicas e da ampliação de transformações, as tecnologias se impõem em nossa sociedade.

Entrevista: Cláudio Manoel Duarte

*Videoartista, curador, pesquisador e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB. Desenvolve pesquisa sobre a produção contemporânea com foco na performance, imagem e arte eletrônica. Em sua trajetória artística, trabalha com poéticas que articulam o vídeo, arte eletrônica, fotografia e cinema. De 2008 a 2011, realizou projetos na Werkplaats Beeldende Kunst Vrije Academie no departamento de imagem da World Wide Visual Factory em Den Haag (Haia), Holanda. Atualmente, é diretor do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas (CECULT/UFRB), em Santo Amaro, Bahia.