Música e Identidade

 

Nessa entrevista o Prof. dr.  Osmundo Pinho* (UFRB, Brasil) fala sobre a relação entre música, burden of representation e políticas identitárias

 O que seria a «música negra», nesse campo da produção de subjetividades e da cultura do consumo?

Osmundo Pinho – Dentre as diversas formas possíveis para abordar essa questão faria a opção por ressaltar a formação de um campo, ou paradigma interpretativo, que se configura a partir de duas matrizes, poderíamos dizer assim. De um certo ponto de vista, ressaltaríamos primeiro a música negra como elemento de um repertório formal/estético, historicamente formado, definido por aquilo que Paul Gilroy, por exemplo, descreve como transfiguração do terror racial, ou formas de reelaboração da experiência histórica e coletiva do trauma da escravidão, da passagem do meio, do racismo, na modernidade dos estados nacionais, definidos por seu projeto racial de nação. Desse ponto de vista a música negra é a elaboração formal, da experiência histórica e coletiva de um povo, ou diversas comunidades, que usam a musica, notadamente em sua materialização performática e performativa, como no samba de roda, no partido alto, na musica de capoeira, no blues, no candombe como expediente da subjetivação objetivada. Desse ponto de vista a cultura negra é esse repertório coletivo, formal e tematicamente plasmado em formas substantivas. Essa dimensão performática é fundamental, para ressaltar aquilo que Diana Taylor chamaria de “repertório”, como forma de armazenar e transmitir conhecimento em setores populares e iletrados, em oposição ao “arquivo”, próprio das sociedades letradas e centralizadas pelo Estado. Dessa forma seríamos obrigados a relativizar nossa percepção ocidental de música como contemplação e fruição, em função de uma perspectiva outra definida justamente pela produção formal, subjetiva, e por uma feição, que poderíamos definir como ritual. Ora, nessa corrente ou manancial, performático/estilístico/histórico-discursivo, a música negra como forma cultural expressiva, se encontra e se remodela na modernidade sob o impacto do Capital e das formas de produção econômica e de sentido próprias ao capitalismo. Não preciso repetir aqui a conhecida tese da inversão entre forma (valor-de-troca) e conteúdo (valor-de-uso) própria de leituras marxistas, como em Walter Benjamim, onde a quantidade (forma de troca) se sobrepõe a qualidade (propriedades substantivas) dos bens, dentre estes é claro, os bens culturais. O re-mapeamento ou re-imaginação (porque no fundo sempre encontramos a “repetição”) do mundo produzido pelo capitalismo organizou os diferentes setores da experiência humana em torno das contradições da mercadoria, como uma gramática do capital. A linguagem simbólica necessária para conferir significado à existência social e ao ser social dos sujeitos, repousa assim nessa contradição. Isso define uma forma de circulação de sentido e uma forma de produção de subjetividades. A música negra, como um rótulo de mercado, transcende ou supera as conexões da experiência histórica de um povo, definindo uma subjetividade politica específica e pode ser comprada e vendida, em composição com todo um conjunto de signos e práticas associadas, nesse sentido, efetivamente alienadas. Tudo isso, entretanto é efetivamente mais complicado. Porque ainda que sob o registro da troca mediada pelo Capital a música negra, não mais meramente como forma expressiva histórica, mas como gênero de mercado, tem sido, geração apos geração, desde pelo menos os anos 30 do século XX, matriz ou fonte para reelaborações subjetivas e reinvenções  estéticas que se reconectam à corrente histórica de instituição de sujeitos, territórios e praticas culturais negras, que são assim (re)inventadas como negras, não por algum atavismo, mas em função dessas mesmas reconexões, sustentadas pelas contradições que apontei.

Frequentemente vemos na história da música popular urbana massiva uma discussão sobre «música boa», «música ruim» atribuídas a alguns gêneros musicais. Alguns desses gêneros musicais – sob a ótica desse julgamento de uma esfera da população e também de setores institucionais – passam a ser perseguidas/proibidas. Em Salvador (Bahia), tivemos o episódio da Lei Anti Baixaria (Lei 12573/12 | Lei nº 12.573 de 11 de abril de 2012 – https://governo-ba.jusbrasil.com.br/legislacao/1031634/lei-12573-12). O que o senhor acha disso?

De um ponto de vista estritamente antropológico, não existe nenhum lugar ou perspectiva não situada, ou comprometida, como valores particulares para julgar ou medir o bom e o mal. Isso é o banal relativismo etnográfico, que não é uma renúncia moral ou ética parta tomar-se partido, mas o mero reconhecimento de que os instrumentos e critérios para a avalição e julgamento são produzidos historicamente e tem existência social, vale dizer particular. Quer gostemos ou não. No campo das definições estéticas na modernidade, não é possível avançamos no debate, sem reconhecer o que está em  jogo na manipulação da cultura como elemento do distanciamento social, como brilhantemente já definiu Pierre Bourdieu: “À hierarquia socialmente reconhecida das artes – e, no interior de cada uma delas – , dos gêneros, escolas ou épocas, corresponde a hierarquia social dos consumidores”. Ou, como de outra forma, e com outra profundidade, diria Jean Baudrillard: “É uma astúcia própria da forma velar-se continuamente na evidência dos conteúdos”. Assim, devemos repetir é impossível tratar de questões de gosto estético, no ambiente sociológico das sociedades de classe, mediadas pelo Capital e centralizadas pelo Estado, sem referência às diversas modalidades de articulação dessa produção de valor (estético) com as diversas formas que assume o poder, como instância produtiva e produtora de objetos, linguagens, corpus e técnicas. Ora, eu sou de uma geração que viu com os próprios olhos e ouviu com os próprios ouvidos, o pagode baiano e a música dos blocos afros transitar (de formas distintas) do porão da vida social (o hold dos embarcados, na linguagem undercommon de Harney e Moten) para os palcos gloriosos e embranquecidos da indústria do carnaval e entretimento na Bahia. Na minha infância e pré-adolescência o que identificamos como pagode baiano e talvez mais propriamente falando, o “samba-duro” era inequivocamente visto com uma música menor – ou mesmo não-música – vulgar, pobre, devassa, instintiva ou ingênua. No espaço de poucos anos o re-mapeamento (re-territorialização) promovido pelo Capital converteu essa forma cultura expressiva em mercadoria, com a subsequente  e jovial alienação dos sujeitos que historicamente foram seus produtores. E mais uma palavra necessária sobre o lugar da sexualidade nisso tudo.  A implantação colonial nas Américas e na África implicou na produção de determinados sujeitos, capturados, não só pela escravidão, mas por maquinas discursivas de subjugação. Na engrenagem desse maquinário, a projeção de ansiedades e fantasias sexuais sobre os nativos e nativas foi elemento fundamental, como discute Anne McClintock em “Couro Imperial”. Dessa forma, a percepção da devassidão ou irrefreamento sexual ou moral –  como uma projeção (não-relativista) de uma agenda política baseada na moralidade cristão e na oposição ocidental entre corpo e alma –  foi agenciada como instrumento da colonização e perpetuada como colonialidade de poder. Definir o corpo negro como devassável e submetido aos próprios instintos, e a cultura, em especial a música  negra como devassa ou imoral coloca as políticas sexuais, e  de respeitabilidade, no centro da agenda politica negra emancipatória, de tal modo que não é necessário ir muito longe para identificar como a defesa da moral e dos bons costumes serviu de motivação, ou Cavalo-de-Tróia, para a violação, estigmatizacão  e criminalização de práticas culturais e dos sujeitos mobilizados por tais práticas. Reconhecer as contradições de gênero e sexualidade nas formas culturais negras, só pode ser feito, dessa forma se levarmos em conta a historicidade das praticas e dos contextos e estes são definidos pela escravidão, pelo racismo e pelo genocídio anti-negro.

Quais as principais implicações nas relações entre a intervenção artística e política, quando pensamos em música e identidade?

Poderíamos talvez discutir dois aspectos ligados a essa questão. Em primeiro lugar a questão da autenticidade. O fardo da representação (burden of representation) projetada sobre os ombros do artista negro, parece querer congelar as possibilidades de investigação formal critica no equilíbrio entre o gênio individual do artista e os cânones da tradição (mesmo de uma tradição subversiva ou contra hegemônica, que também tem lá seus cânones). Essa conexão seria outra forma de transcrever a relação entre o sujeito e sua agência singular, plasmada eventualmente como uma sensibilidade contra-a-corrente ou como um lampejo extremo de inventividade artista. Pensemos em um artista como Jean-Michel Basquiat. A tradição, como essa fonte de um ou mais repertórios, e como um indicador de vinculação entre o sujeito e sua história, fornece assim um centro de gravidade, que às vezes é um ponto de equilíbrio, às vezes uma tração rumo ao abismo. O artista negro é muitas vezes compelido a traduzir uma experiência coletiva, ou a memória de um povo. Como se o “povo” ou mesmo a “memória” já estivesse lá, em algum lugar, já previamente definido e não fosse justamente a expressão de uma invenção, ou um suplemento, acrescido ao horizonte dos signos, das formas e das práticas justamente pela agência e pela inventividade. Como eu mesmo busquei discutir em “O Mundo Negro”, categoria proposta e sustentada como um espaço de instauração de sujeitos e discursividades, instituições e repertórios justamente pela agência, “atividade consciente” de homens e mulheres, reais e concretos, no palco da História. O artista negro, não é, ou não deveria ser, o fiador da memória cultural de um povo e do povo negro em particular, e essa imposição não pode sacrificar a invenção e a sofisticação estética em benefício de um programa, ao fim e ao cabo essencialista. Outra questão, que não é exclusiva do campo das artes, ou da música negra, mas que nela ganha contornos particulares refere-se a relação entre forma e conteúdo. Evidentemente que sabemos que, de muitos pontos de vista, a forma é o seu próprio conteúdo. E isso não implica necessariamente em um esvaziamento histórico pós-moderno, ou um descolamento das estruturas semióticas das estruturas politicas. Ou, dito de outro modo, reconhecer a historicidade das formas estéticas, e de representação, não exige imediatamente voltarmos a dicotomias rígidas entre, por exemplo, super e infraestrutura, ou entre significante e significado, de maneiras homólogas. O conteúdo para as formas expressivas negras certamente se refere a História, mas também às contradições que a História projeta para as formas de subjetivação negras, atravessadas por situações de classe, gênero e/ou sexualidade. Um bom exemplo de crítica estética negra está em Manthia Diawara. Em ensaio sobre o “Looking for Langston” de Isaac Julien (1996), Diawara discute duas noções. Em primeiro lugar, ele enfatiza como os aspectos formais, vanguardistas, como a edição, a utilização de imagens históricas, os silêncios, etc., compõem um conteúdo vanguardista – “tipicamente auto-reflexivo, intransitivo e unicamente preocupado com o processo de produção em si mesmo” – determinante para o significado global do filme. Ele chama essa dimensão de “conteúdo da forma”. Esse aspecto é em si mesmo significativo e implica em uma tradução formal de preocupações políticas e subjetivas, que ganham expressividade por meio de sua própria estrutura. Mas o filme, além disso, está comprometido em representar determinados conteúdos, ou um imaginário da negritude, que outros preferem cancelar. Para entender então esses aspectos conteudísticos Diawara emprega a noção de “forma do conteúdo: a substância do imaginário negro que o filme coloca em cena”. Assim, nas politicas de representação, justamente mediadas pela relação entre intervenção artística e política, deveríamos considerar tanto os aspectos formais, como portadores de um significado próprio, como os aspectos semânticos, estruturados como um suplemento à nossa percepção do mundo. Para Diawara, por fim, o imaginário negro é um espaço em transformação e autoprodução, em diálogo com  formas, estereótipos e/ou tradições não reconhecidas, que  se vê dessa forma implicado em reinventar-se continuamente.  Uma perspectiva com a qual eu concordo plenamente.

Entrevista: Cláudio Manoel Duarte de Souza

 

*Osmundo Pinho possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (1993), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (1996) e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2003). É Professor Associado I no Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, campus de Cachoeira, no programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e no Mestrado Profissional em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas da mesma universidade. É professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia e Pesquisador Associado I no Instituto de Estudos da Africa da Universidade Federal de Pernambuco. Cumpriu estágio Pós-Doutoral como Visiting Scholar no African and African Diaspora Studies Department da Universidade do Texas em Austin, apoiado pela CAPES por meio de bolsa Estagio Sênior (Nov. 2013-Dez. 2014). Tem experiência em Antropologia e Estudos Culturais, com ênfase em Teoria Antropológica e em Antropologia das Populações Afro-Brasileiras e da Diáspora, atuando principalmente nos seguintes temas: relações raciais, sexualidade e gênero.