Música em Rede

 

Beyonce & Madonna

A Profa. Dra. Tatiana Rodrigues Lima* (UFRB, Bahia, Brasil) comenta sobre a digitalização da música, novos mercados on line e suas formas de consumo

– Hoje temos um mercado on-line de música, com plataformas comerciais de vendas em streaming e download. Como pensar a música nessas novas condições de reconfiguração de consumo?

Tatiana Lima – Podemos pensar a música gravada nesse contexto sob vários ângulos: temos várias formas de circulação, a ubiquidade dos arquivos, a profusão de produções independentes, novos modelos de remuneração dos compositores e músicos e novos conflitos nesse setor, a ampliação do acesso às produções, a pulverização das audiências que levou a uma sensível redução dos padrões de consumo no mainstream, a valorização e ampliação da esfera do fandom, a extração e o uso (até comercial) de dados sobre os ouvintes por parte das plataformas… Venho pensando a reconfiguração do consumo a partir da experiência de fruição do ouvinte nesse cenário. As plataformas de streaming e seus sistemas de recomendação têm, em alguma medida, mediado a relação dos ouvintes com a “descoberta” de bandas, DJs, compositores e demais produtores. O trabalho não remunerado dos ouvintes, alimentando bancos de dados enquanto pagam por serviços ou arquivos, retroalimenta o consumo. Audição de arquivos em hardwares diversos, alguns deles com restrições nas frequências emitidas, gera experiências que flexibilizam nossas exigências de escuta em determinadas situações. Por outro lado, o consumo da performance ao vivo ganhou um plus em termos de capital cultural, em contraponto às diversas formas de ouvir música gravada.

– Há uma valorização das performances ao vivo em decorrência da digitalização? Que impacto a digitalização da música e/ou a música on-line teve no mainstream e na cena independente?

Sim, há uma valorização da fruição no show. Mas isso não se reflete necessariamente em um aumento do quantitativo de shows e/ou de faturamento, principalmente se pensamos no mainstream. Os valores de que estou falando envolvem a materialização da experiência musical na situação “ao vivo”. Estão em jogo a imprevisibilidade, não obstante os ensaios e roteiros prévios dos shows; a tactilidade das frequências sonoras e seus efeitos de materialidade no corpo do ouvinte; a interação da plateia com o palco e sua interferência na performance e na experiência. Esses elementos sempre fizeram parte da performance musical ao vivo, mas a digitalização trouxe a socialidade e a tecnicidade que parte do ambiente da apresentação, do aqui-agora material, e se desdobra em redes telemáticas em um aqui-agora on-line nas selfies, lives, textos etc. e também nas performances transmídia. Quanto às cenas independentes, nas vias digitais, elas acham caminhos prolíficos para se estabelecer em nichos ou ganhar maior projeção. O cenário contemporâneo é permeável a várias gradações de iniciativas (alternativas, de nicho, independentes entre outras) que se situam em posições intermediárias e tensivas entre os extremos do underground ou do mainstream. As produções das cenas independentes têm encontrado mais formas de circulação, mais canais de comunicação para além dos contatos presenciais. Os músicos e os demais integrantes das cenas – ouvintes e pessoas implicadas na viabilização de shows, eventos, lançamentos etc. – estão mais conectados, dialogam com mais facilidade, o que reforça as possibilidades associativas. É preciso olhar as cenas de perto, compreender suas propostas, para entender os impactos distintos da digitalização conforme as especificidades de cada uma delas.

– Existem vários modelos de comercialização da música. Podemos caracterizar um modelo ideal que atenda à produção independente dos artistas? Ou a circulação seguem o padrão broadcasting, tendo a música atravessada pelos labels e distribuidoras no antigo formato tradicional?

O padrão broadcasting tradicional foi repaginado na última década. As majors, as gravadoras médias e os selos que atuavam com a logística de distribuição do formato material CD já ingressaram na logística da circulação digital, assumindo algumas atividades da cadeia e terceirizando outras, mas disponibilizando seus produtos nas principais plataformas de venda e assinatura digital. Estrelas do mainstream, como Beyoncé, por exemplo, têm assessoria para redes sociais atuando em português, espanhol, inglês etc., dialogando diretamente com grupos de fãs no Facebook, Twitter e outras redes. Beyoncé lança seus álbuns e filmes por majors, mas investe em novas plataformas, como o Tidal e o Youtube. Já faz mais de dez anos que Madonna rompeu com a Warner Bros. Records (em 2007) e fechou contrato com a divisão dedicada à administração de carreiras da promotora de shows Live Nation Artists (LNA). Existe, todavia, como já mencionado, uma pulverização das audiências e ampliação das formas de circulação que redistribuíram parte do consumo mainstream, beneficiando a produção independente. As possibilidades de circulação digital da música independente em parcerias com pequenos e médios selos e até com os próprios ouvintes, em financiamentos coletivos, trazem mais autonomia. Mas vale lembrar que até mesmo as plataformas de financiamento coletivo cobram um percentual pelo serviço. Está mais barato e acessível gravar, mas ainda assim isso requer investimentos, pessoais ou de terceiros. Uma vez gravados em qualidade razoável, os trabalhos independentes produzidos nos mais remotos cantos do mundo são disponibilizados em plataformas que comercializam via venda, assinatura ou publicidade a música mainstream, como Spotify, Deezer, iTunes, YouTube etc. As vias mais “óbvias”, digamos, de circulação estão abertas para uma gama maior de música gravada, do sucesso de massa ao cult ou ao underground. A proposta musical e o capital inicial para investimento são dois fatores que norteiam as rotas dos artistas, que adotam modelos conforme esses e outros parâmetros. Não acho que vá existir um dia o modelo ideal. Os projetos musicais, dos mais pops aos mais arrojados esteticamente, fazem combinações variadas diante das possibilidades de circulação e comercialização atuais.

Entrevista: Cláudio Manoel Duarte

 

*Tatiana Rodrigues Lima é professora de Comunicação e de Crítica Musical no Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas (Cecult) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), onde lidera o grupo de pesquisa Música e Mediações Culturais. É jornalista graduada pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba), com mestrado e doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas também pela (Ufba). Pesquisa  a relação entre a música popular urbana e as mediações culturais contemporâneas, considerando o atual contexto de conexão digital entre a produção, a circulação e a recepção/consumo.